Você conhece o Mestre dos Magos? Personagem do desenho animado chamado Caverna do Dragão lançado nos anos 80, Mestre dos Magos era uma espécie de guardião que aparecia repentinamente com o intuito de ajudar um grupo de jovens perdidos em um mundo mágico a voltarem para a casa. Da mesma forma que o Mestre dos Magos aparecia magicamente, ele sumia, sem dar muitas explicações.
Há 14 anos eu me tornei pregoeira. Como alguns dizem, eu fui essencialmente aquela “pregoeira raiz”, de pregões presenciais, com salas lotadas de licitantes, envelopes, carimbos e papelada. Eram horas e horas com lances registrados manualmente na ata feita no Word. Não havia sistemas, nem atas geradas automaticamente.
Lembro de um Pregão Presencial, cujo objeto era merenda escolar. Licitantes, eu e minha equipe de apoio ficamos até quase 10 horas da noite na sessão pública. Os lances eram de centavos em centavos, e a passos de cágado conseguimos finalizar a fase das propostas.
Com a abertura da habilitação todos os documentos eram analisados por mim e pela equipe de apoio. Era um tal de confere com original, carimba daqui, certifica dali. De site em site, de carimbo em carimbo, devagar e sempre, conseguíamos concluir a licitação.
Um dia, imagino eu, em um futuro não tão distante assim, contarei a mesma história aos meus alunos e muitos duvidarão que as licitações do país eram processadas de uma maneira tão demorada, burocrática e antieconômica.
Infelizmente, ainda temos órgãos, em sua maioria municipais, que executam suas licitações na forma presencial. Eu não os criticarei, não sem antes conhecer a sua verdadeira realidade.
Em um Brasil de vários “Brasis”, é comum existir municípios com inúmeras dificuldades para a implantação da licitação eletrônica em suas compras públicas, realidade que promete mudar sob a nova perspectiva da Lei 14.133/2021, a nova lei de licitações, em vigor desde 01/04/2021. Veremos.
Curiosamente, por outro lado, algumas entidades que migram para as licitações eletrônicas, parecem estar sempre com um pé no analógico e outro pé no digital.
Eu também fui pregoeira de pregão eletrônico. Posso dizer que as minhas primeiras experiências foram péssimas. Muitas por total desconhecimento, outras por total apego ao processo físico.
Com o tempo, fui pegando o espírito da coisa e logo concluí que a melhor coisa do mundo era não ter um licitante por perto na minha licitação. (risos).
Reconheço que é relativamente difícil essa passagem de “pregoeira presencial” para “pregoeira eletrônica”. Demoramos a entender que o processo eletrônico requer uma dinâmica diferente.
Se antes na licitação presencial a apresentação de documento original para conferência ou autenticidade em cartório eram indispensáveis, hoje na licitação eletrônica algumas burocracias passam a não mais fazer sentido com a utilização de registro cadastral, como o Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF – ou pela aceitação de documentos em cópias simples em seu formato digital.
Se antes no pregão presencial, após a análise da documentação de habilitação deveríamos aguardar as vistas de todos os licitantes presentes, hoje com o Pregão Eletrônico e a existência de um sistema de disputa virtual, é plenamente possível que todos os participantes tenham acesso simultâneo aos documentos, ditando um ritmo mais célere ao certame.
Ora, é preciso virar a chave quando a licitação passa a ser eletrônica, mas nem sempre é o que ocorre.
Lembra do Mestre dos Magos? Pois bem. No Pregão Eletrônico, existe a figura daquele que eu denominei carinhosamente de “Pregoeiro Mestre dos Magos”.
Tal como o personagem do Caverna do Dragão, o Pregoeiro Mestre dos Magos aparece e desaparece sem qualquer aviso prévio na sessão virtual do pregão eletrônico.
Há 3 anos como advogada de licitante, eu catalogo os erros mais comuns dos pregoeiros e o erro mais comum disparado é sumir da sessão e reaparecer sem qualquer aviso. Um erro “bobo”, mas que pode levar a revogação da licitação, a depender do caso.
Confesso que eu mesma já fui uma “Pregoeira Mestre dos Magos”. Contaminada pela prática dos pregões presenciais, para mim, o licitante deveria esperar pacientemente online, quando eu terminasse de analisar os documentos, pois a qualquer momento a minha decisão poderia sair. “Ai dele que não ficasse esperto”,
Quantos de nós não repetimos o mantra: “licitante deve permanecer logado, sob o ônus de perder o negócio pela sua exclusiva responsabilidade”?
Ocorre que em uma leitura desatenta, é possível ter uma interpretação equivocada do art. 19, IV do Decreto no 10.024/2019. A premissa de permanecer logado refere-se especificamente à conexão do participante. Não cabe a Administração arcar
com o ônus que deve ser somente do licitante de ter uma internet estável para participar dos pregões.
Entretanto, quando o pregoeiro precisar de um longo tempo para analisar a documentação dos licitantes, ou precisar aguardar pareceres técnico e jurídico a fim de subsidiar o julgamento da proposta ou da habilitação, a responsabilidade de permanecer online indefinidamente passa a não ser mais suportada pelo licitante.
Eu costumo dizer que o pregoeiro Mestre dos Magos possui a “síndrome do pregoeiro presencial”.
Ao contrário da sessão pública presencial em que todos os participantes se encontram no mesmo ambiente, impossibilitados de sair ou presos ao rito da licitação, na sala da sessão virtual do pregão eletrônico o cenário passa a ser outro. O pregoeiro não precisa reproduzir os mesmos passos que daria na sessão presencial, simplesmente porque alguns atos passam a não fazer mais qualquer sentido.
Sendo assim, é necessário que naqueles casos que demandarem um tempo razoável de ausência do pregoeiro, seja pela análise da documentação ou da proposta, haja a suspensão administrativa com a devida motivação do ato administrativo, havendo a designação de nova data e hora de reabertura da sessão pública, a qual deve ser cumprida fielmente por todos.
São incontáveis as vezes que eu testemunhei pregoeiros não se atentarem para a correta reabertura ou suspensão do certame, abrindo a sessão com saudações de “bom dia” ou “boa tarde” e a mensagem para que os licitantes permaneçam “logados” para em seguida simplesmente sumirem.
Bem ao estilo dos Mestres dos Magos, o pregoeiro ao sumir do ambiente virtual, deixa o licitante logado o dia inteiro, receoso de que a qualquer momento o pregoeiro reapareça com uma convocação ou decisão importante no certame.
Certa vez procurada por um cliente, atuei no caso de uma licitação que a pregoeira sumiu por quase 2 meses! Como se não bastasse, a nova data da sessão foi publicada apenas no chat, fazendo com que a empresa perdesse o prazo de intenção de recurso. Foi possível reverter a situação com o peticionamento de uma Revisão Administrativa. A Licitação foi revogada, e o processo que já estava na fase de homologação teve que retornar ao momento da fase recursal.
Em meu perfil do Instagram @priscillavieira.licitar, não foram poucos os seguidores que me relataram sobre semelhantes condutas de outros pregoeiros, uma prática cada vez mais comum nos pregões eletrônicos.
O último relato, infelizmente, tratou de sumiços propositais por parte de um pregoeiro que, em razão do provável direcionamento de licitação e conluio com certas empresas, o único intuito era de que os demais concorrentes perdessem o prazo de intenção de recurso, que como todos sabem, é de apenas 20 minutos na maioria dos pregões eletrônicos, e o pregoeiro pudesse adjudicar logo o objeto.
É meus amigos, tem de tudo na Suíça.
O Tribunal de Contas da União no Acórdão 512/2009 Plenário – observou que na condução da fase pública do pregão eletrônico, o pregoeiro, a partir da sessão inicial de lances até o resultado final do certame, deverá sempre avisar previamente, via sistema (chat), a suspensão temporária dos trabalhos, em função de horário de almoço e/ou término do expediente, bem assim a data e o horário previstos de reabertura da sessão para o seu prosseguimento, em atendimento aos princípios, em especial os da publicidade e da razoabilidade, estabelecidos no art. 5° do Decreto n° 5.450/2005.
No mesmo sentido, o Acórdão 3.486/2014 Plenário, aduz o seguinte: “o lançamento, no sistema (via chat), da suspensão temporária dos trabalhos em função dos mais variados motivos – horário de almoço, término de expediente, interrupção programada no fornecimento de energia etc. – é a medida que mais se coaduna com o fundamental princípio da publicidade e da transparência que deve nortear os trabalhos dos torneios licitatórios da Administração”.
O Princípio da Publicidade deve ser observado pela Administração Pública e os agentes públicos devem zelar pela maior transparência possível de seus atos, para que os licitantes e sobretudo a população tenham o conhecimento de todas as atuações e decisões.
A falha reveste-se de gravidade suficiente à aplicação de multa ao pregoeiro, pois possibilita que os licitantes sejam colhidos de surpresa, sem prévio aviso, sobre o início da fase de lance, ou, ainda, da continuidade dos trabalhos que deveriam, na verdade, serem suspensos para melhor condução do certame.
O Decreto no 10.024/2019 o qual regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica, no âmbito da administração pública federal, não dispõe especificamente sobre as suspensões das sessões do pregão eletrônico. Apenas o art. 35 faz referência quanto à desconexão do sistema na etapa de lances, determinando que quando a desconexão do pregoeiro persistir por tempo superior a dez minutos, a sessão pública será suspensa e reiniciada somente decorridas vinte e quatro horas após a comunicação do fato aos participantes.
Os editais quase sempre acabam reproduzindo o referido dispositivo, sem ao menos esclarecer os prazos mínimos de retorno para os demais casos de suspensão. De praxe, o “chat” é eleito como meio de comunicação oficial para os avisos de suspensão e reaberturas das sessões, sem qualquer critério, no entanto, para os casos de “desaparecimento” do pregoeiro.
Ocorre que, embora tenhamos uma lacuna no regulamento federal, não é forçoso concluir a possibilidade de tratamento análogo entre as situações que envolvem o “Pregoeiro Mestre dos Magos” com aquelas definidas no art. 35.
Se no transcurso da sessão pública, o pregoeiro verificar a necessidade de mais tempo para análise da documentação, deve haver a correta suspensão da sessão, com a comunicação nochatda próxima hora de retorno com a atualização do andamento processual.
Saem felizes os licitantes que se desobrigarão de aguardar ininterruptamente o retorno do pregoeiro, restam felizes os pregoeiros que certamente contribuirão para a diminuição do custo de transação e contratações mais vantajosas para a administração.
Ainda quanto à suspensão, importante observar que naqueles casos que a documentação analisada pelo pregoeiro consta exclusivamente no SICAF ou quando são realizadas diligências ao longo da fase de habilitação, é imprescindível que os documentos não inseridos originalmente no sistema sejam amplamente disponibilizados aos demais concorrentes, com tempo razoável para a devida análise.
Deve o pregoeiro ter o cuidado de não apenas fazer uma breve comunicação de disponibilização dos documentos, que pode se dar por drive em nuvem, diretamente nos sítios oficiais ou outro meio previsto em edital, mas de conceder prazo razoável para análise por parte dos licitantes, sob pena da licitação não estar em conformidade com os princípios da isonomia e razoabilidade.
Nos casos de licitações que necessitam de muito mais tempo para análise de qualificação do licitante, ou em fases longas, como a de apresentação de amostras, a nova data de reabertura de sessão deve ser feita da forma mais ampla possível, com a publicação no sistema de compras e no sítio oficial do órgão, bem como o envio de e- mails para os participantes.
Importante ressaltar que é necessário que o edital preveja como o aviso de suspensões administrativas será publicado, regulamentando tempo mínimo de retorno dos licitantes em caso de silêncio do pregoeiro ou desconexão por mais de 10 minutos, em respeito aos princípios da publicidade e razoabilidade.
Outra questão de suma importância é o conhecimento pelo pregoeiro quanto aos comandos de suspensão administrativa próprios dos sistemas de compras públicas. A depender do sistema, é possível que determinado comando provoque o disparo de notificações automáticas, com envio de e-mails aos participantes, permitindo a máxima publicidade da suspensão, como é o caso do “Compras”, sistema do governo federal.
O que vimos, portanto, é que determinadas condutas administrativas não mais se encaixam no ambiente das licitações eletrônicas. Devemos, portanto, readequá- las e readaptá-las, em obediência ao princípio da publicidade. A mudança é inadiável, principalmente com o advento da Nova Lei de Licitações.
Por fim, espero que um dia o “Pregoeiro Mestre do Magos” suma de uma vez por todas das sessões dos pregões eletrônicos e que encontremos o caminho de volta às licitações mais seguras e transparentes.