As formalidades mínimas necessárias à extinção unilateral do contrato na Lei nº 14.133/2021.

   A disciplina da extinção unilateral do contrato administrativo ganhou alguns novos contornos na Lei nº 14.133/2021, apesar de ter sido mantidas no novo diploma algumas das formalidades da Lei nº 8.666/1993.

 

   Este artigo não tem a intenção de esgotar o tema, nem muito menos adentrar nas hipóteses previstas em lei para a extinção do contrato, mas sim relacionar, ainda que em exame inicial, as formalidades mínimas a serem observadas para a extinção unilateral do contrato administrativo.

 

   Vejamos o que dispõe o inciso I e § 1º do art. 138 da Lei nº 14.133/2021:

Art. 138. A extinção do contrato poderá ser:

I – determinada por ato unilateral e escrito da Administração, exceto no caso de descumprimento decorrente de sua própria conduta;

(…)

§ 1º A extinção determinada por ato unilateral da Administração e a extinção consensual deverão ser precedidas de autorização escrita e fundamentada da autoridade competente e reduzidas a termo no respectivo processo.

 

   De início, cabe aqui uma crítica à redação do enunciado do inciso I e do § 1º, ambos do art. 138 da Lei nº 14.133/2021, em que o legislador, infelizmente, deixou de lado a clareza e a precisão, cabendo agora ao intérprete extrair a norma ali contida que seja condizente com a integralidade do novo regime de licitações e contratos administrativos e com a Constituição Federal.

 

   Sobre esse assunto, são perspicazes as palavras de Ivan Barbosa Rigolin[1]:

   Será unilateral (inc. I) e por ato escrito da administração que está proibido de ser produzido caso exista culpa da própria administração – é o que se deduz do pessimamente redigido inciso, que dá ideia de que o ato extintivo não será escrito se houver culpa da administração –, o que evidentemente não faz sentido.

(…)

O § 1º, igualmente embaraçoso de tão mal redigido, informa que a extinção unilateral e a bilateral “deverão ser precedidas de autorização escrita e fundamentada da autoridade competente e reduzidas a termo no respectivo processo”. Então, são duas autoridades, uma que autoriza e outra que extingue o contrato? Não basta uma que tenha competência para contratar e para extinguir o contrato, declarando-o extinto? Entendemos que basta uma.

 

   Joel de Menezes Niebuhr possui o mesmo posicionamento acerca do § 1º do art. 138 da Lei nº 14.133/2021, no sentido de que a decisão sobre a extinção do contrato é um ato da autoridade competente ali mencionada. Para o referido autor, após a conclusão da instrução do processo administrativo, este “(…) deve ser direcionado à autoridade competente, que deve decidir pela extinção ou pela manutenção do contrato[2].

 

   Já Marçal Justen Filho[3] tem outro posicionamento sobre a questão da autorização da autoridade superior, prevista no § 1º do art. 138 da Lei nº 14.133/2021. Explica o citado autor:

O § 1º exige a autorização prévia, escrita e motivada da autoridade superior para ser promovida a extinção do contrato. A exigência destina-se a evitar que a autoridade de hierarquia inferior assuma integralmente a responsabilidade pela decisão de impor a extinção. Elimina-se a possibilidade de atribuir ao agente subalterno a responsabilidade isolada pelo ato rescisório – quando, na verdade, trata-se apenas de dar cumprimento às ordens do superior.

Portanto, será nula a rescisão sem a vinculação pessoal da autoridade competente, assim entendida aquela dotada de poderes para decidir o destino da entidade e para orientar seus atos.

 

   Quanto às hipóteses para a extinção unilateral do contrato, estas estão elencadas no art. 137 da Lei nº 14.133/2021:

Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações:

I – não cumprimento ou cumprimento irregular de normas editalícias ou de cláusulas contratuais, de especificações, de projetos ou de prazos;

II – desatendimento das determinações regulares emitidas pela autoridade designada para acompanhar e fiscalizar sua execução ou por autoridade superior;

III – alteração social ou modificação da finalidade ou da estrutura da empresa que restrinja sua capacidade de concluir o contrato;

IV – decretação de falência ou de insolvência civil, dissolução da sociedade ou falecimento do contratado;

V – caso fortuito ou força maior, regularmente comprovados, impeditivos da execução do contrato;

VI – atraso na obtenção da licença ambiental, ou impossibilidade de obtê-la, ou alteração substancial do anteprojeto que dela resultar, ainda que obtida no prazo previsto;

VII – atraso na liberação das áreas sujeitas a desapropriação, a desocupação ou a servidão administrativa, ou impossibilidade de liberação dessas áreas;

VIII – razões de interesse público, justificadas pela autoridade máxima do órgão ou da entidade contratante;

IX – não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz.

 Percebe-se a manutenção expressa na lei da necessária e obrigatória observância do devido processo legal em quaisquer das hipóteses que ensejam a extinção do contrato, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa ao contratado, princípios estes previstos no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

 

É essencial, portanto, que o direito constitucional ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa sejam respeitados antes do ato decisório, seguindo a ordem a seguir:

1 – Instauração formal do respectivo processo administrativo (art. 137, caput);

2 – Descrição clara e completa da conduta avaliada, indicando precisamente a falta cometida pelo contratado (art. 137, caput);

3 – Intimação do contratado com determinação para correção, em prazo razoável, de eventual falta que este tenha cometido, se esta puder ser corrigida, bem como informação sobre o acesso aos autos e o local para protocolo da defesa prévia, e esclarecimento sobre a possibilidade de produção de provas (art. 137, caput);

4 – Notificação dos emitentes das garantias, se for o caso, para, querendo, ingressar no processo como terceiros interessados (art. 137, § 4º);

5 – Correção da falta e/ou defesa prévia pelo contratado e, se for o caso, solicitação de produção de provas (art. 137, caput);

6 – Decisão de deferimento ou não do requerimento de produção de provas, se for o caso;

7 – Produção de provas, se deferido (art. 137, caput);

8 – Emissão de parecer pelo órgão de assessoria jurídica;

9 – Decisão administrativa, de forma escrita e fundamentada pela autoridade competente, que extingue unilateralmente o contrato, quando a falta for grave e assim indicar o interesse público ou quando não tiver sido corrigida a falta pelo contratado e/ou for tida como improcedente a defesa prévia apresentada por este (art. 138, § 1º);

10 – Intimação do contratado acerca da decisão administrativa que extingue unilateralmente o contrato art. 165, inciso I);

11 – Abertura de prazo para recurso quanto à decisão de extinção unilateral contratual (art. 165, inciso I, alínea “e”);

12 – Reconsideração ou não da decisão pela autoridade que tenha decidido pela extinção unilateral do contrato, no prazo de 3 (três) dias úteis, e caso não reconsidere da decisão, encaminhamento do recurso com a sua motivação à autoridade superior, a qual deverá proferir sua decisão no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contado do recebimento dos autos; e

13 – Intimação do contratado, comunicando-o sobre o resultado do julgamento do recurso.

  Tudo isso com o objetivo de permitir que o contratado se manifeste adequadamente nos autos, exercendo seu direito à defesa prévia antes de uma possível extinção unilateral do contrato, conforme prevê o caput do art. 137 da Lei nº 14.133/2021, bem como apresente suas razões em sede recursal, de acordo com a alínea “e” do inciso I do art. 165 da mesma Lei.

Nessa linha, ensina Marçal Justen Filho[4]:

Deve reputar-se que a ausência de cumprimento ao devido processo legal configura-se não apenas quando há negativa direta e imediata na produção da decisão punitiva, mas também quando existe um arremedo de processo.

Não é incomum a autoridade simular a observância de um processo, enfocado como mera formalidade prévia para aplicar a sanção cuja imposição já estava predeterminada. Assim, instaura-se o processo e se convoca o particular para defender-se. Recusa-se a produção de qualquer prova, sempre sob o fundamento de impertinência, produzindo-se imediatamente a punição. Nesse caso, rejeitam-se sumariamente as defesas do particular, sendo muito comum a decisão citra petita. Ou seja, se o particular invocou argumentos de procedência irrefutável, costuma-se ignorar sua existência. Decide-se pura e simplesmente pela punição, invocando-se a seguir a autoexecutoriedade do ato administrativo para impor coercitivamente a solução que fora preordenada.

Condutas dessa ordem violam a ordem constitucional e infringem a concepção de um Estado Democrático de Direito.

 

   Verifica-se, portanto, que a extinção unilateral do contrato está sujeita ao princípio do devido processo legal, e que a Administração só pode realizá-la legitimamente por meio de um procedimento que garanta ao interessado a ampla defesa e o contraditório. Ademais, a decisão que declara a extinção unilateral do contrato deve ser devidamente motivada, com menção expressa aos fatos e fundamentos que amparem a referida decisão.

 

   Não se admite, portanto, que o contrato seja extinto unilateralmente sem que tenham sido observadas as formalidades exigidas em lei, sob pena de nulidade do ato.

 

   Nem se diga, igualmente, que a mera intimação do contratado apenas após a extinção do contrato para que este manifeste sua defesa garante a observância do devido processo legal e dos princípios do contraditório e da ampla defesa, especialmente porque a defesa, neste caso, deve ser garantida de forma prévia à tomada de decisão da extinção unilateral do contrato, e não posterior ao ato que decide pela extinção.

 

   Vale destacar também que a simples identificação de uma das hipóteses previstas nos incisos I a IX do caput do art. 137 da Lei nº 14.133/2021 não autoriza automaticamente a Administração a iniciar um processo administrativo visando à extinção do contrato. Nem todas as hipóteses ali previstas constituem ato vinculado, cabendo à Administração, no exercício de sua discricionariedade, realizar um juízo de valor, de modo a identificar, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como em estrita observância das regras da LINDB, se a extinção unilateral do contrato é a decisão que melhor se impõe no caso concreto para atender ao interesse público na contratação.

 

   Sobre esse último aspecto, ensina Egon Bockmann Moreira e Flávio Amaral Garcia[5]:

Tanto a constitucionalização do Direito Administrativo como a LINDB reconfiguraram as prerrogativas da Administração, estabelecendo condicionantes e requisitos para a seu válido exercício. Nos termos da legislação brasileira, a Administração Pública é munida de competência específica que a permite avaliar as circunstâncias reais do caso concreto, examinar as alternativas, consequências e proporcionalidade das medidas cabíveis, instalar o devido processo administrativo e verificar se não é possível uma solução consensual – para, só depois do fim desse trajeto, decidir motivadamente pela extinção unilateral do contrato. Não é autorizado o exercício dessa competência sem o respeito ativo à Lei nº 14.133/2021 e à LINDB. Trata-se de cumprimento do princípio constitucional da legalidade, orientado pela eficiência (Constituição, art. 37, caput).

(…)

Mesmo diante de eventual inadimplemento do contratado, a extinção do contrato pode não ser a melhor solução. Não se deve operar a partir de uma espécie de automatismo extintivo do contrato, cabendo ao agente público, à luz das circunstâncias do caso concreto, avaliar e justificar, por escrito e motivadamente, se a extinção unilateral do contrato é a medida mais adequada para o atendimento do interesse público.

Cumpre ainda destacar que regulamento poderá especificar procedimentos e critérios para verificação da ocorrência dos motivos previstos no caput do art. 137 da Lei nº 14.133/2021, conforme preceitua o § 1º do referido artigo.

____________________________________

[1] RIGOLIN, Ivan Barbosa. Lei nº 14.133/2021 comentada: uma visão crítica. 1. Reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 409.

[2] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 1181.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1500.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1496.

[5] MOREIRA, Egon Bockmann; GARCIA, Flávio Amaral. Contratos Administrativos na Lei de Licitações: comentários aos artigos 89 a 154 da Lei nº 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 372-373.

Cleverson Ferreira

Advogado especializado em Licitações e Contratos Administrativos. Pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Prática pelo Instituto Goiano de Direito (IGD). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Pregoeiro, Agente de Contratação e Membro de Comissão de Contratação na Prefeitura de Goiânia. Atua desde 2013 com licitações e contratos administrativos.

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