Quem se dispõe a realizar um processo de licitação, seja para a contratação de qualquer objeto, percebe que não é uma atividade fácil. E quem diz o contrário é porque não se aventurou por esses caminhos tormentosos ou porque ignorou grande parte das complexas normas que tratam do tema, sejam elas gerais ou específicas, nacionais ou locais.
Há uma máxima nesse meio de que quem “cai de paraquedas” no setor de licitações, de lá não sairá nunca mais, algo bem próximo da situação daquele grupo de seis amigos da série animada “Caverna do Dragão”, da década de 80, que foram transportados para um mundo inóspito, mágico e totalmente diferente, e todos os dias buscavam uma forma de sair dali. Pobres crianças!
Mas voltemos às licitações…
Se eu pudesse dar uma recomendação a essa pessoa que chegou recentemente ao setor de licitações e recebeu o encargo de conduzir a fase preparatória de uma contratação qualquer, uma boa dica seria: comece pelo fim! Isso mesmo, por mais contraproducente que pareça, começar pelo fim é um bom começo!
Cabe aqui, igualmente, uma paráfrase da conhecida frase do filósofo irlandês Edmund Burke, no sentido de que “quem não conhece o passado, está condenado a repeti-lo”. E quando se trata de licitações, isso acontece com certa frequência! Afinal, quem nunca viu em uma repartição pública uma tesoura que não corta papel, um grampeador que não cumpre sua função de grampear, uma caneta que não escreve, um papel toalha que de toalha nada tem, sendo necessário quase um pacote inteiro para secar uma simples mão, e aquele café imbebível que foi licitado dias antes, além de inúmeros outros casos semelhantes que poderiam ser relacionados aqui?
Assim, revisitar o histórico das contratações feitas pelo órgão para atender a uma determinada demanda é salutar para trazer à luz os resultados alcançados pelas respectivas contratações, se bons ou ruins.
Nesse sentido, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, que instituiu o novo regime de licitações e contratos administrativos, criou a figura do “relatório final”.
Vejamos o que dispõe a alínea “d” do inciso VI do § 3º do art. 174 da Lei nº 14.133/2021:
Art. 174. É criado o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sítio eletrônico oficial destinado à:
(…)
§ 3º O PNCP deverá, entre outras funcionalidades, oferecer:
(…)
VI – sistema de gestão compartilhada com a sociedade de informações referentes à execução do contrato, que possibilite:
(…)
d) divulgação, na forma de regulamento, de relatório final com informações sobre a consecução dos objetivos que tenham justificado a contratação e eventuais condutas a serem adotadas para o aprimoramento das atividades da Administração.
Como se vê, a Lei nº 14.133/2021 determina a divulgação de um documento denominado “relatório final” no PNCP, que deverá conter, necessariamente, informações sobre a consecução dos objetivos que serviram de justificativa para a contratação realizada, bem como eventuais condutas a serem adotadas para o aprimoramento das atividades da Administração.
Por óbvio, estes são os elementos mínimos que o relatório final deverá conter, os quais poderão ser ampliados mediante eventual regulamento que o ente ou órgão venha a editar sobre o tema. Por exemplo, a Lei nº 14.133/2021 não menciona quem é o responsável pela elaboração do referido relatório final. Diante dessa lacuna, no âmbito federal foi publicado o Decreto nº 11.246, de 27 de outubro de 2022, que, dentre outras regras voltadas à atuação dos agentes responsáveis pelas principais fases da contratação, dispõe no inciso VI do art. 21 o seguinte:
Art. 21. Caberá ao gestor do contrato e, nos seus afastamentos e seus impedimentos legais, ao seu substituto, em especial:
(…)
VI – elaborar o relatório final de que trata a alínea “d” do inciso VI do § 3º do art. 174 da Lei nº 14.133, de 2021, com as informações obtidas durante a execução do contrato;
Assim, no âmbito dos órgãos vinculados ao Poder Executivo da União, cabe ao gestor do contrato e, nos seus afastamentos e impedimentos legais, ao seu substituto, a elaboração do relatório final, descrevendo nele as informações obtidas na execução do contrato.
Não obstante, no âmbito federal tal função anteriormente competia ao fiscal do contrato, nos termos do art. 70 da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017, quando da contratação de serviços sob o regime de execução indireta.
Essas informações constituirão a base de dados das lições aprendidas durante a execução dos contratos e servirão de subsídios para a melhoria das atividades da Administração.
Cumpre destacar que, mesmo havendo a necessidade de um relatório final da contratação, nada impede que sejam igualmente colhidas informações de forma periódica pelos gestores ou fiscais dos contratos durante a execução do contrato, as quais poderão, inclusive, ser utilizadas para melhoria da execução do mesmo contrato, principalmente em contratos de longo prazo (e a Lei nº 14.133/2021 alargou os prazos máximos de vigência de alguns objetos) e tais ajustes não demandarem maiores complexidades para sua implementação.
Dessa forma, um olhar atento do agente público acerca do histórico dos contratos anteriores, principalmente quando há um relatório final acerca da execução contratual, nos moldes delineados pela Lei nº 14.133/2021, pode mostrar os pontos a serem melhorados na próxima contratação, abrindo-se até mesmo a possibilidade de remodelar a contratação para evitar, desde a fase de seleção dos fornecedores, eventuais problemas que podem surgir na contratação. Isso, claro, desde que seja justificado e fundamentado no Estudo Técnico Preliminar (ETP), nos termos do § 1º do art. 18 da Lei nº 14.133/2021.
Cumpre destacar que, muito mais do que servir para o aprimoramento das atividades da Administração, o relatório final também é um instrumento de gestão compartilhada com a sociedade, nos termos do inciso VI do § 3º do art. 174 da Lei nº 14.133/2021. Ele cumpre a função de transparência e accountability das atividades da Administração e possibilita o controle social, pois qualquer pessoa poderá verificar no referido relatório se os objetivos que justificaram a contratação foram concretizados após a execução do contrato.
Aliás, não é demais lembrar que os objetivos gerais da licitação estão devidamente elencados no caput do art. 11 da Lei nº 14.133/2021, sendo que os objetivos específicos da contratação deverão ser bem delineados no processo, na fase preparatória, de forma a justificar a contratação e, ao fim do contrato, servir como parâmetro para comparação com o resultado da contratação.
O relatório final, portanto, cumpre a função de retroalimentar as contratações com informações concretas, amparadas nas experiências contratuais anteriores da Administração, de forma a maximizar, cada vez mais, o atingimento do princípio constitucional da eficiência nas contratações públicas.
Infelizmente, até a data de elaboração deste texto, o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), criado pela Lei nº 14.133/2021, destinado a servir como meio de divulgação do relatório final da contratação, dentre outras funções, não possuía quaisquer relatórios finais das contratações já realizadas sob o novo regime de licitações e contratos administrativos, certamente pelo fato de o PNCP não contar ainda com o sistema de gestão compartilhada com a sociedade de informações referentes à execução do contrato, o que reduz significativamente o conhecimento, pelos interessados, das informações relativas ao alcance dos objetivos visados pelas contratações efetuadas sob a égide da Lei nº 14.133/2021.
Assim, até que seja implementada no PNCP a ferramenta que possibilite a divulgação do relatório final exigido na alínea “d” do inciso VI do § 3º do art. 174 da Lei nº 14.133/2021, compete aos órgãos divulgarem tal documento em seus portais oficiais, a fim de possibilitar, como dito, o controle social das contratações públicas e aos agentes públicos retroalimentarem as futuras contratações com informações relativas às contratações anteriormente realizadas pelo mesmo ente ou órgão ou, também, por outros entes ou órgãos que tenham contratado objeto semelhante ao que se pretende contratar.